segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Lima Barreto: Epifania e Catarse pura


Neste fim de semana a minha amiga Marília, a famosa Mary, esteve em São Paulo e assistiu a peça de teatro "Policárpio Quaresma", do diretor Antunes Filho, inspirado na obra de Lima Barreto.


O que isso tem a ver comigo?


Muita coisa, ou talvez tudo, pois me fez vir à mente, já esquecida, esse personagem tão interessante da nossa literatura, esse escritor tão esquecido pela grande maioria.


Na faculdade, quando entramos no realismo/ pré-modernismo fizemos a leitura de "Clara dos Anjos" e "Triste Fim de Policarpo Quaresma" e agora eu decidi que por curiosidade ou respeito, ainda não meditei sobre isso, preciso ler novamente essas obras, preciso ler a nossa literatura, pois me faz bem, me faz pensar.


Lima Barreto, pelos seus ideais e incorformismo de uma sociedade brasileira já tão problemática em sua época, criou Policarpo Quaresma, tão patrióta, tão culto e tão ingênio, como muitos de nós, que sonhamos com um Brasil justo, que amamos nossa história, apesar dos pesares. Espero que não tenhamos um triste fim como o de Policárpio e tantos outros que acreditaram na justiça por um país justo.

Lima é atual. Simples. Fantástico.


A Mary trouxe um material lindo sobre a peça, com muitas citações, ensaios e artigos sobre Lima Barreto e sua obra catártica. Muito interessante. Acho digno compartilhar algumas dessas epifanias:


“A arte literária se apresenta como um verdadeiro poder de contágio que a faz facilmente passar de simples capricho individual, para traço de união, em força de ligação entre os homens (...) a Literatura reforça o nosso natural sentimento de solidariedade com os nossos semelhantes” [Prefácio "Clara dos Anjos"]



Elogio da morte


Não sei quem foi que disse que a Vida é feita pela Morte. É a destruição contínua e perene que faz a vida.

A esse respeito, porém, eu quero crer que a Morte mereça maiores encômios.

É ela que faz todas as consolações das nossas desgraças; é dela que nós esperamos a nossa redenção; é ela a quem todos os infelizes pedem socorro e esquecimento.

Gosto da Morte porque ela é o aniquilamento de todos nós; gosto da Morte porque ela nos sagra. Em vida, todos nós só somos conhecidos pela calúnia e maledicência, mas, depois que Ela nos leva, nós somos conhecidos (a repetição é a melhor figura de retórica), pelas nossas boas qualidades.

É inútil estar vivendo, para ser dependente dos outros; é inútil estar vivendo para sofrer os vexames que não merecemos.

A vida não pode ser uma dor, uma humilhação de contínuos e burocratas idiotas; a vida deve ser uma vitória. Quando, porém, não se pode conseguir isso, a Morte é que deve vir em nosso socorro.

A covardia mental e moral do Brasil não permite movimentos. de independência; ela só quer acompanhadores de procissão, que só visam lucros ou salários nós pareceres. Não há, entre nós, campo para as grandes batalhas de espírito e inteligência. Tudo aqui é feito com o dinheiro e os títulos. A agitação de uma idéia não repercute na massa e quando esta sabe que se trata de contrariar uma pessoa poderosa, trata o agitador de louco.

Estou cansado de dizer que os malucos foram os reformadores do mundo.

Le Bon dizia isto a propósito de Maomé, nas suas Civilisation des arabes, com toda a razão; e não há chanceler falsificado e secretária catita que o possa contestar...

São eles os heróis; são eles os reformadores; são eles os iludidos; são eles que trazem as grandes idéias, para melhoria das condições da existência da nossa triste Humanidade.

Nunca foram os homens de bom senso, os honestos burgueses ali da esquina ou das secretárias chics que fizeram as grandes reformas no mundo.

Todas elas têm sido feitas por homens, e, às vezes mesmo mulheres, tidos por doidos.

A divisa deles consiste em não ser panurgianos e seguir a opinião de todos, por isso mesmo podem ver mais longe do que os outros.

Se nós tivéssemos sempre a opinião da maioria, estaríamos ainda no Cro-Magnon e não teríamos saído das cavernas.

O que é preciso, portanto, é que cada qual respeite a opinião .de qualquer, para que desse choque surja o esclarecimento do nosso destino, para própria felicidade da espécie humana.

Entretanto, no Brasil, não se quer isto. Procura-se abafar as opiniões, para só deixar em campo os desejos dos poderosos e prepotentes.

Os órgãos de publicidade por onde se podiam elas revelar, são fechados e não aceitam nada que os possa lesar.

Dessa forma, quem, como eu nasceu pobre e não quer ceder uma linha da sua independência de espírito e inteligência, só tem que fazer elogios à Morte.

Ela é a grande libertadora que não recusa os seus benefícios a quem lhe pede. Ela nos resgata e nos leva à luz de Deus.

Sendo assim, eu a sagro, antes que ela me sagre na minha pobreza, na minha infelicidade, na minha desgraça e na minha honestidade.

Ao vencedor, as batatas!


Marginália - Lima Barreto (19-10-1918)


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