terça-feira, 30 de agosto de 2011

Momento Epifânico: Cânticos [Cecília Meireles]

Nos dois últimos sábados tive o prazer de ter aulas maravilhosas sobre Clássicos da Literatura Universal com o Mestre Jacir Braz de Vicente. Pensa numa pessoa inteligentíssima, culta e simples/humilde de tudo, então, me encantei por essa pessoa e com seus ensinamentos, pena que só terei mais um sábado para apreciar sua aula.


Um dos textos dado por ele foi a poesia "Cânticos" de Cecília Meireles. Essa poesia mexeu muito comigo, e de tão lindo dói, por isso quero deixar registrado aqui no meu cantinho.


Deleitem-se:


CÂNTICOS
Cecília Meireles

I
Não queiras ter Pátria.
Não dividas a Terra.
Não dividas o Céu.
Não arranques pedaços ao mar.
Não queiras ter.
Nasce bem alto.
Que as coisas todas serão tuas.
Que alcançarás todos os horizontes.
Que o teu olhar, estando em toda parte
Te ponha em tudo,
Como Deus.

II
Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontens -
Não queiras ser o de amanhã.
Faze-te sem limites no tempo.
Vê a tua vida em todas as origens.
Em todas as existências.
Em todas as mortes.
E sabe que serás assim para sempre.
Não queiras marcar a tua passagem.
Ela prossegue:
É a passagem que se continua.
É a tua eternidade. . .
É a eternidade.
És tu.

III
Não digas onde acaba o dia-
Onde começa a noite.
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra,
Onde termina o céu.
Não digas até onde és tu.
Não digas desde onde é Deus.
Não fales palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa, completamente silencioso.
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.

IV
Adormece o teu corpo com a música da vida. Encanta-te.
Esquece-te.
Tem por volúpia a dispersão.
Não queiras ser tu.
Queira ser a alma infinita de tudo.
T roca o teu curto sonho humano
Pelo sonho imortal.
O único.
Vence a miséria de ter medo.
Troca-te pelo Desconhecido.
Não vês, então, que ele é maior?
Não vês que ele não tem fim?
Não vês que ele és tu mesmo?
Tu que andas esquecido de ti?

V
Esse teu corpo é um fardo.
É uma grande montanha abafando-te.
Não te deixando sentir o vento livre
Do Infinito.
Quebra o teu corpo em cavernas
Para dentro de ti rugir
A força livre do ar.
Destrói mais essa prisão de pedra.
Faze-te recepo.
Âmbito.
Espaço.
Amplia-te.
Sê o grande sopro
Que circula...

VI
Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.

VII
Não ames como os homens amam.
Não ames com amor .
Ama sem amor .
Ama sem querer.
Ama sem sentir.
Ama como se fosse outro.
Como se fosse amar.
Sem esperar.
Por não esperar .
Tão separado do que ama, em ti,
Que não te inquiete
Se o amor leva à felicidade,
Se leva à morte,
Se leva a algum destino.
Se te leva.
E se vai, ele mesmo. . .

VIII
Não digas: "o mundo é belo".
Quando foi que viste o mundo?
Não digas: "o amor é triste".
Que é que tu conheces do amor?
Não digas: "a vida é rápida".
Como foi que mediste a vida?
Não digas: "eu sofro".
Que é que dentro de ti és tu?
Que foi que te ensinaram
Que era sofrer?

IX
Os teus ouvidos estão enganados.
E os teus olhos.
E as tuas mãos.
E a tua boca anda mentindo
Enganada pelos teus sentidos.
Faze silêncio no teu corpo.
E escuta-te.
Há urna verdade silenciosa dentro de ti.
A verdade sem palavras.
Que procuras inutilmente,
Há tanto tempo,
Pelo teu corpo, que enlouqueceu.

X
Este é o caminho de todos que virão.
Para te louvarem.
Para não te verem.
Para te cobrirem de maldição.
Os teus braços são muito curtos.
E é larguíssimo este caminho.
Com eles não poderás impedir
Que passem, os que terão de passar,
Nem que fiques de pé.
Na mais alta montanha,
Com os teus braços em cruz.

XI
Vê formaram-se sobre todas as águas
Todas as nuvens.
Os ventos virão de todos os nortes.
Os dilúvios cairão sobre os mundos.
Tu não morrerás.
Não há nuvens que te escureçam.
Não há ventos que te desfaçam.
Não há águas que te afoguem.
Tu és a própria nuvem.
O próprio vento.
A própria chuva sem fim. . .